3.7.08

Homo Hominis Lupus (segunda parte).


Sobressaltado, Demogorgon ofegava sentado sobre um rochedo, sentindo uma leve vertigem. Suas mãos tremiam descompassadas, estava cercado de árvores velhas e retorcidas que, mesmo sendo dia, davam-lhe um estranho temor. Contorcia-se de uma fome avassaladora, que chegava a virar dor. Sua cabeça explodia em terríveis dores esporádicas, que atacavam suas têmporas em momentos inesperados. Trêmulo, ergueu-se cambaleante, tropicando sobre as pedras. O pouco que sobrara da barra de suas calças, rasgou-se com os galhos espinhosos que se ramificavam por cima do chão rochoso.
Ele adentrou novamente por entre a densa floresta. Como flashs, ia lembrando-se dos momentos que vivenciara na noite passada, com um profundo terror que ia transbordado sua alma. Olhou uma última vez para o mar, brilhando com o sol a cintilar no horizonte. O únicos pedaços de madeira do navio naufragado boiavam à beira da praia, por entre as espumas brancas do mar. Os urubus montavam um grande salão de festa à orla, trazendo em suas gargantas com grandes bicadas o que restou dos corpos esbranquiçados deitados na areia da praia, como fantasmas ao meio dia. Desesperadamente, ajoelhou-se ao lado de uma garrafa de rum boiando à beira da praia, e como os lábios de uma linda donzela, beijou o gargalo com um ar de súplica, rogando uma mísera gota de álcool, na qual pudesse acalmar os demônios enjaulados dentro de sua alma. Ergueu-se derrotado, com a boca seca de água salgada.
Adentrou na floresta, que, a cada passo que dava, tornava-se cada vez mais silenciosa, como se todas as árvores e plantas se calassem com sua presença, prestando atenção no seu corpo cambaleante, mais morto do que vivo, que perambulava sem destino. Demogorgon cravou as unhas na barriga, tentando arrancar dela a dor dilaceradora, a fome, aquele ser maldito que avassalava o interior de seu corpo em cem pedaços. Se pudesse defini-la, talvez tivesse dito que a fome doía como unhas compridas e afiadas que raspavam no seu estômago, rasgando-lhe numa dor mortífera e lenta. Sem destino, quase cego de agonia, ele corria pelo campo de árvores compridas, esgueirando-se quase que por intuição das pedras erguidas no meio das trilhas, e como uma canção maldita, gritava, deixando as tépidas lágrimas escorrerem pela face suja de medos. Demogorgon se calou quando seu corpo fora jogado para frente, no momento em que o campo florestado inclinava-se para baixo, num misterioso barranco coberto por uma densa camada de grama e pedras antigas. Seu corpo rolava desgovernado, pequenos cortes em seus braços eram feitos pelas pedras pontiagudas no caminho, suas costas aqueceram-se com o sangue que jorrou quando uma lâmina traiçoeira perfurou seu corpo. Seu grito fora abafado por uma pedra que parou o movimento do seu corpo pelo campo inclinado. De olhos fechados, com os lábios colados na pedra, ouvia apenas os bruscos movimentos do seu coração, e uma respiração, que não era a sua, ao fundo.
Abriu, de repente, os olhos, e se deparou com a descrição do epitáfio “Depois de muito comer, será comido a partir de agora, Willian Jepsen Metcalf: ¶1898 - †1945” entalhada num bloco de pedra que, horrorizado, percebeu ser uma funesta lápide. Levantou rapidamente o corpo adormecido, e viu, ainda mais aterrorizado, várias lápides encravadas na terra, como uma gigantesca mão que desenterrava do solo seus dedos rochosos. Ali, vindo em sua direção como um canino nascido no Inferno, a sombra negra de um homem corria, saltando raivosamente por entre os túmulos. Demogorgon apanhou do chão um pedaço de pedra, um dos únicos que sobraram de uma lápide à um metro de distância de seu corpo, e sem pensar uma única vez, lançou-a contra o individuo, que se esquivou do objeto atacado, com a mesma agilidade de uma pantera faminta.
Subindo com dificuldade o declínio onde havia caído, sentia o sol candente arder o ferimento em suas costas. Olhava para trás, hora ou outra, verificando a distância entre si e o maníaco há alguns metros de distância. Desesperado, Demogorgon apanhou do chão um galho torto de um pinheiro, em busca de defesa. Seu pulmão parecia pequeno demais para todo ar que respirava, o galho pesado demais para seu braço, as pernas lentas e moles demais para correr. Esgotado, apoiou-se em uma pedra. Olhou para os lados, dando-se conta de que aquele cemitério perdido já não estava mais ali, e que ninguém mais o perseguia. O silêncio era como uma manta de aço.
Ajoelhou-se no chão, apertando os braços contra o estômago. Encolhido, gritava de fome, amaldiçoando cada árvore daquela ilha, por não encontrar alimento nelas. Cravou os dedos sobre o chão, e sobre suas mãos colocou um punhado de terra, onde enfiou-a na boca, e com nojo, mastigou, sentindo um líquido de gosto acre molhar sua língua; sobre os lábios, pousava uma minhoca que se contorcia a cada dentada que Demogorgon dava. Engoliu o pobre animal, e de olhos fechados, ainda sentiu-o se debater em sua garganta. Ergueu-se, e de ouvidos apurados, pôde ouvir, ao longe, o barulho de água. No rosto, imprimiu um sorriso de felicidade, talvez o único sorriso que dera desde que pisou naquela ilha. Com os braços, afastava os cipós e galhos das árvores, protegia seus olhos dos espinhos, esmurrava alguma aranha presa em alguma teia. Corria em linha reta, sentindo aquele delicioso barulho d’água ecoar em seus ouvidos, como uma sinfonia de Mozart: a cada passo que dava, os ruídos iam crescendo, crescendo em seus ouvidos, até que, quase cego pela luz do sol, coçou os olhos acostumados ao escuro, para ter certeza de que aquilo era um sonho ou não: parado sobre uma clareira, sobre seus olhos estendia-se uma pequena cachoeira, que derramava água cristalina sobre um pequeno lago de peixes coloridos.
Jogou o corpo contra a água, abrindo a boca para matar sua sede, e as mãos para matar sua fome, para agarrar algum dos peixes. Seu corpo estava tombado sobre o chão, suas roupas estavam secas. Abrindo os olhos com cuidado, viu a grama seca balançar com um vento que acabara de soprar. O barulho de água havia sumido, apenas o silêncio reinava em seus ouvidos. Levantou seu corpo dolorido, e atônito, olhou para os lados, vendo apenas algumas pedras, terra e grama. Onde estavam a água e os peixes? Tocava tudo ao seu redor, tentando sentir, pelo menos, uma gota d’água na ponta de seu dedo. Chorando, dava socos no ar, amaldiçoando aquele seu mofino destino.
(continua...)