2.3.08

Charlie


Ele não se lembrava de nada: não se lembrava do que havia comido ontem, não havia se lembrado também do que comeu hoje, e provavelmente não se lembrará do que vai comer amanhã. Sua miserável memória era tão gasta quando as botas que costumava calçar, sem se importar em molhar os pés nos dias de chuva. A geladeira era repleta de recados que iam de lembretes escritos em folhas de cadernos, até pequenos post-its escandalosamente coloridos. Seus atrasos em encontros familiares já não eram mais surpresa, e todos os primos, tias e avós haviam se acostumado com a cara de vergonha que ele fazia a cada jantar. Mas Charlie era esperto: sempre encontrava pelo caminho algum motivo para puxar assunto à mesa de jantar, naquelas tediosas reuniões de família.
Mesmo se existissem palavras para defini-lo, elas seriam invisíveis. Ao lado de Lola, cantava em todas as noites frias e sem dono à beira da janela do quarto, esquecendo-se do início de suas canções e quase sempre do refrão também: algum dó, ou um sol, ou um mi, era esquecido pelo caminho. Depositava com zelo e carinho Lola no colo, e ajeitava suas cordas (no qual tinha orgulho de denominá-las de cabelo) e hora e outra declarava seu amor por alguém que não existia; suas crises de rinite eram tão freqüentes que a presença do lenço vermelho no bolso de trás da calça tornou-se fundamental e até mesmo costumeira. Costumava sair cedo de casa, de barriga vazia com uma ou duas xícaras de café, e voltava ao entardecer, pois se esquecia quase sempre do caminho de volta para casa.
Achava Bob Dylan um grande mal educado: sempre desabafava seus problemas (na maioria das vezes inventados) e Dylan cantava e tocava, e nunca o escutava. Era o mesmo com a Janis, com o Johnny Cash, e todos eles eram sem educação em sua farta imaginação carente. Encheu-se tanto de falar, que apenas escutava, e aprendera, com isso, que todos eles o compreendiam. A partir daquele momento, as suas folhas ficaram com o cargo de psicólogos. Isso, quando não se esquecia dos problemas.

5 comentários:

Clarissa L. disse...

A solidão nos ajuda a ver o que realmente importa,
e é dai que flui o silencio sabio.
Charlie tem nas mãos muito mais que Lola, e é capaz de compreender muito mais que Dylan, Cash, e qualquer outro.

P disse...

Joplin, Cash, Dylan, Lennon, McCartney...
São apenas pobres coitados, mortos ou vivos, que, assim como qualquer deus, são culpados por não nos ouvir e por não nos dar a atenção devida.
E nós, somos os mortais, que exigimos deles o que não conseguimos tirar de nós mesmos.
Nossas lembranças escondidas que só são recordadas através da música.

Anônimo disse...

Dylan deve se sentir solitario tambem, por ser o ultimo cowboy sobrevivente. Mas não podemos esquecer que mesmo joplin, cash, lennon,MacCartney, Ringo, George, Clapton, Hendrix e entre outros rebeldes surdos, tambem ja ouviram culpando o jovem Buddy Rolly.
Essas palavras homogenias que Charlie esta se envolvendo esta me cheirando um novo livro do noso grande Leandro.
obs. Adorei

Hádron Barnabé disse...

Quando Da Vinci pintou Monalisa, não se sabe ao certo quem era essa estranha, porém bela moça.
Será que ela era uma amante? Ou talvez uma qualquer nas ruas européias. Poderia ser sua mãe ou irmã, ou até mesmo - acredite - ele mesmo.
O que seria Monalisa, então, sabendo-se que sua forma craniana era igual a de Da Vinci?
Igualmente, cada pedaço de arte tem um pouco de nós , que nós mesmos interpretamos todos os dias, até que um novo Charlie venha e assim uma nova arte...

P.S.: Roubaram o primeiro comentáio! Hahahaha!

EuCor Reprime Brasil disse...

hahahahahahaha!

salvem os lokos!