
Ele sentiu medo das próprias mãos. Olhou-as por um longo tempo, analisando cada detalhe de suas unhas sujas, cada ponta de seus dez dedos, mas ainda não conseguia entender o porquê daquela faca estar deitada na palma de suas mãos. A lâmina era cálida, e brilhava diabolicamente com a luz lunar. Ele desviou o olhar de seu próprio corpo, olhou ao seu redor, e teve como trilha sonora o farfalhar das folhas no alto das copas das árvores, o ruído fúnebre do vento sorrateiro e a pesada respiração de Apollyon; sua figura macilenta agora perambulava como um fantasma maldito no meio das gigantescas árvores, que erguiam-se como agulhas negras perfurando o céu sombrio.
- Venha, Demogorgon! Cá já estamos perdidos neste paraíso amaldiçoado, comendo apenas o vento vomitado pelas montanhas e ilusões de uma liberdade longínqua. Nosso corpo implora por comida, nossa alma, por tranqüilidade...
- Tranqüilidade, Apollyon? Como descansaremos em paz, sabendo que nosso amigo dormirá em nossas entranhas? Como poderemos cerrar os olhos, e termos belos sonhos, tendo o sentimento de agonia pesando em nossas consciências?
- Então morras de fome! Pereça na escuridão da noite, morda teu próprio corpo e mastigue a tua própria carne. Não vês que é suicídio, isso o que fazes? Tentar esconder-te atrás do teu moralismo não vai adiantar em nada. Viva! Ame tua vida, ama-te. Não pelo prazer, mas sim pela sobrevivência... Ajoelhe-se neste chão de terra, e comigo, venha banhar-te em sangue morno e saciar a tua fome!
Ele desviou os olhos de Apollyon, como se agora temesse aquela imagem que há tanto tempo conhecia, como se aquela face pálida nunca tivesse feito parte de suas lembranças, como se aquelas feições tétricas fossem estranhas aos seus olhos. Ele olhou novamente para as mãos, os braços, olhou-se como se aquele corpo não fosse seu, se estivesse deslocado, perdido em um espaço vazio. Sentiu um estranho arrepio no corpo quando dera alguns passos à frente, aproximando-se da sombra caída sobre a grama seca. A lua iluminou parcialmente o corpo estendido no chão, como um farol na ponta da praia, apontando para o fundo negro do mar, um navio naufragado. Apollyon fixou os olhos opacos no próprio rosto refletido numa poça de líquido negro.
- Fome! Tenho fome! – gritou Apollyon, erguendo os braços em direção ao céu obscuro, como se exaltasse forças invisíveis – Esse desejo maldito que esmaga minhas entranhas, raspa com agonia o interior de minh’alma... Esse desejo tão natural, tão desesperador... Esse desejo... que mata.
Como um cão sarnento e abandonado, ajoelhou-se sobre a terra seca, farejando como animal cada parte daquele corpo frígido. Ele sacou das vestes imundas de terra, suor e sangue, um pequeno punhal que costumava carregar consigo em todas as viagens. Como um abutre faminto em busca de carne putrefata, pousou suas garras no cadáver e rasgou-lhe a roupa que cobria o corpo. Pobre humano, esfaqueado de loucuras e desejos! A ponta da lâmina deslizou como serpente sobre a pele branca do defunto, derramando sobre a terra um filete de sangue.
- Não! Pare com essa loucura! Já fizemos demais, matá-lo...! Não podemos prosseguir com este ato insano e...
-... Vital! Este ato é insano e vital, Demogorgon.
- Agora sei, mais do que nunca, de como nós, relés seres humanos, somos frágeis e quebradiços. Não irei participar dessa loucura, Apollyon! Jamais irei manchar meus lábios de sangue humano.
Apollyon não respondera: com as mãos pousadas levemente sobre a barriga do morto, abriu-lhe com a ponta dos dedos o corte que fizera com seu punhal. A neblina espessa flutuava por entre as árvores grotescas, onde Demogorgon, olhando para o horizonte, tinha a forte impressão de estar cercado por centenas de espectros esfumaçados, que caminhavam lentamente, sem rumo, como se estivessem a pagar os pecados cometidos em vida. Ele afastou-se bruscamente, dando alguns passos para trás, ao assistir, com horror, a cena que se passara aos seus olhos: Apollyon, ajoelhado, agarrava com as mãos trêmulas um punhado de miúdos ensangüentados, vindos das entranhas do cadáver, e levava à boca com um estranho desejo que cintilava em seus olhos castanhos.
Sem dar-se conta do chão que estremecia embaixo de seus pés, tropeçou de costas em uma das tantas rochas cravadas por entre a grama seca, sentindo seu corpo desmoronar paulatinamente em cima de uma poça de bile criada por uma de suas fortes ânsias de vômito. Demogorgon ergueu-se e correra tão rapidamente sem nenhuma direção, que quando deu por si próprio, estava parado, olhando diretamente para uma lua cheia e mística pairada no céu, boiando sobre um mar de escuridão. Uma estranha sonolência cobrira seus olhos com mãos pesadas, anestesiou seu corpo de toda dor e tombou-o sobre o gélido chão rochoso banhado de luz. Adormecera.
- Tranqüilidade, Apollyon? Como descansaremos em paz, sabendo que nosso amigo dormirá em nossas entranhas? Como poderemos cerrar os olhos, e termos belos sonhos, tendo o sentimento de agonia pesando em nossas consciências?
- Então morras de fome! Pereça na escuridão da noite, morda teu próprio corpo e mastigue a tua própria carne. Não vês que é suicídio, isso o que fazes? Tentar esconder-te atrás do teu moralismo não vai adiantar em nada. Viva! Ame tua vida, ama-te. Não pelo prazer, mas sim pela sobrevivência... Ajoelhe-se neste chão de terra, e comigo, venha banhar-te em sangue morno e saciar a tua fome!
Ele desviou os olhos de Apollyon, como se agora temesse aquela imagem que há tanto tempo conhecia, como se aquela face pálida nunca tivesse feito parte de suas lembranças, como se aquelas feições tétricas fossem estranhas aos seus olhos. Ele olhou novamente para as mãos, os braços, olhou-se como se aquele corpo não fosse seu, se estivesse deslocado, perdido em um espaço vazio. Sentiu um estranho arrepio no corpo quando dera alguns passos à frente, aproximando-se da sombra caída sobre a grama seca. A lua iluminou parcialmente o corpo estendido no chão, como um farol na ponta da praia, apontando para o fundo negro do mar, um navio naufragado. Apollyon fixou os olhos opacos no próprio rosto refletido numa poça de líquido negro.
- Fome! Tenho fome! – gritou Apollyon, erguendo os braços em direção ao céu obscuro, como se exaltasse forças invisíveis – Esse desejo maldito que esmaga minhas entranhas, raspa com agonia o interior de minh’alma... Esse desejo tão natural, tão desesperador... Esse desejo... que mata.
Como um cão sarnento e abandonado, ajoelhou-se sobre a terra seca, farejando como animal cada parte daquele corpo frígido. Ele sacou das vestes imundas de terra, suor e sangue, um pequeno punhal que costumava carregar consigo em todas as viagens. Como um abutre faminto em busca de carne putrefata, pousou suas garras no cadáver e rasgou-lhe a roupa que cobria o corpo. Pobre humano, esfaqueado de loucuras e desejos! A ponta da lâmina deslizou como serpente sobre a pele branca do defunto, derramando sobre a terra um filete de sangue.
- Não! Pare com essa loucura! Já fizemos demais, matá-lo...! Não podemos prosseguir com este ato insano e...
-... Vital! Este ato é insano e vital, Demogorgon.
- Agora sei, mais do que nunca, de como nós, relés seres humanos, somos frágeis e quebradiços. Não irei participar dessa loucura, Apollyon! Jamais irei manchar meus lábios de sangue humano.
Apollyon não respondera: com as mãos pousadas levemente sobre a barriga do morto, abriu-lhe com a ponta dos dedos o corte que fizera com seu punhal. A neblina espessa flutuava por entre as árvores grotescas, onde Demogorgon, olhando para o horizonte, tinha a forte impressão de estar cercado por centenas de espectros esfumaçados, que caminhavam lentamente, sem rumo, como se estivessem a pagar os pecados cometidos em vida. Ele afastou-se bruscamente, dando alguns passos para trás, ao assistir, com horror, a cena que se passara aos seus olhos: Apollyon, ajoelhado, agarrava com as mãos trêmulas um punhado de miúdos ensangüentados, vindos das entranhas do cadáver, e levava à boca com um estranho desejo que cintilava em seus olhos castanhos.
Sem dar-se conta do chão que estremecia embaixo de seus pés, tropeçou de costas em uma das tantas rochas cravadas por entre a grama seca, sentindo seu corpo desmoronar paulatinamente em cima de uma poça de bile criada por uma de suas fortes ânsias de vômito. Demogorgon ergueu-se e correra tão rapidamente sem nenhuma direção, que quando deu por si próprio, estava parado, olhando diretamente para uma lua cheia e mística pairada no céu, boiando sobre um mar de escuridão. Uma estranha sonolência cobrira seus olhos com mãos pesadas, anestesiou seu corpo de toda dor e tombou-o sobre o gélido chão rochoso banhado de luz. Adormecera.
(continua...)
2 comentários:
De estremecer os órgãos de qualquer um. E de retorcer os de qualquer vegetariano.
Espero a continuação.
Gostei muito da imagem do Goya LÊ...muito msm, mas ainda não tive tempo de ler, prometo que depois vou...
bjus saudades sempre!
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