3.7.08

Homo Hominis Lupus (segunda parte).


Sobressaltado, Demogorgon ofegava sentado sobre um rochedo, sentindo uma leve vertigem. Suas mãos tremiam descompassadas, estava cercado de árvores velhas e retorcidas que, mesmo sendo dia, davam-lhe um estranho temor. Contorcia-se de uma fome avassaladora, que chegava a virar dor. Sua cabeça explodia em terríveis dores esporádicas, que atacavam suas têmporas em momentos inesperados. Trêmulo, ergueu-se cambaleante, tropicando sobre as pedras. O pouco que sobrara da barra de suas calças, rasgou-se com os galhos espinhosos que se ramificavam por cima do chão rochoso.
Ele adentrou novamente por entre a densa floresta. Como flashs, ia lembrando-se dos momentos que vivenciara na noite passada, com um profundo terror que ia transbordado sua alma. Olhou uma última vez para o mar, brilhando com o sol a cintilar no horizonte. O únicos pedaços de madeira do navio naufragado boiavam à beira da praia, por entre as espumas brancas do mar. Os urubus montavam um grande salão de festa à orla, trazendo em suas gargantas com grandes bicadas o que restou dos corpos esbranquiçados deitados na areia da praia, como fantasmas ao meio dia. Desesperadamente, ajoelhou-se ao lado de uma garrafa de rum boiando à beira da praia, e como os lábios de uma linda donzela, beijou o gargalo com um ar de súplica, rogando uma mísera gota de álcool, na qual pudesse acalmar os demônios enjaulados dentro de sua alma. Ergueu-se derrotado, com a boca seca de água salgada.
Adentrou na floresta, que, a cada passo que dava, tornava-se cada vez mais silenciosa, como se todas as árvores e plantas se calassem com sua presença, prestando atenção no seu corpo cambaleante, mais morto do que vivo, que perambulava sem destino. Demogorgon cravou as unhas na barriga, tentando arrancar dela a dor dilaceradora, a fome, aquele ser maldito que avassalava o interior de seu corpo em cem pedaços. Se pudesse defini-la, talvez tivesse dito que a fome doía como unhas compridas e afiadas que raspavam no seu estômago, rasgando-lhe numa dor mortífera e lenta. Sem destino, quase cego de agonia, ele corria pelo campo de árvores compridas, esgueirando-se quase que por intuição das pedras erguidas no meio das trilhas, e como uma canção maldita, gritava, deixando as tépidas lágrimas escorrerem pela face suja de medos. Demogorgon se calou quando seu corpo fora jogado para frente, no momento em que o campo florestado inclinava-se para baixo, num misterioso barranco coberto por uma densa camada de grama e pedras antigas. Seu corpo rolava desgovernado, pequenos cortes em seus braços eram feitos pelas pedras pontiagudas no caminho, suas costas aqueceram-se com o sangue que jorrou quando uma lâmina traiçoeira perfurou seu corpo. Seu grito fora abafado por uma pedra que parou o movimento do seu corpo pelo campo inclinado. De olhos fechados, com os lábios colados na pedra, ouvia apenas os bruscos movimentos do seu coração, e uma respiração, que não era a sua, ao fundo.
Abriu, de repente, os olhos, e se deparou com a descrição do epitáfio “Depois de muito comer, será comido a partir de agora, Willian Jepsen Metcalf: ¶1898 - †1945” entalhada num bloco de pedra que, horrorizado, percebeu ser uma funesta lápide. Levantou rapidamente o corpo adormecido, e viu, ainda mais aterrorizado, várias lápides encravadas na terra, como uma gigantesca mão que desenterrava do solo seus dedos rochosos. Ali, vindo em sua direção como um canino nascido no Inferno, a sombra negra de um homem corria, saltando raivosamente por entre os túmulos. Demogorgon apanhou do chão um pedaço de pedra, um dos únicos que sobraram de uma lápide à um metro de distância de seu corpo, e sem pensar uma única vez, lançou-a contra o individuo, que se esquivou do objeto atacado, com a mesma agilidade de uma pantera faminta.
Subindo com dificuldade o declínio onde havia caído, sentia o sol candente arder o ferimento em suas costas. Olhava para trás, hora ou outra, verificando a distância entre si e o maníaco há alguns metros de distância. Desesperado, Demogorgon apanhou do chão um galho torto de um pinheiro, em busca de defesa. Seu pulmão parecia pequeno demais para todo ar que respirava, o galho pesado demais para seu braço, as pernas lentas e moles demais para correr. Esgotado, apoiou-se em uma pedra. Olhou para os lados, dando-se conta de que aquele cemitério perdido já não estava mais ali, e que ninguém mais o perseguia. O silêncio era como uma manta de aço.
Ajoelhou-se no chão, apertando os braços contra o estômago. Encolhido, gritava de fome, amaldiçoando cada árvore daquela ilha, por não encontrar alimento nelas. Cravou os dedos sobre o chão, e sobre suas mãos colocou um punhado de terra, onde enfiou-a na boca, e com nojo, mastigou, sentindo um líquido de gosto acre molhar sua língua; sobre os lábios, pousava uma minhoca que se contorcia a cada dentada que Demogorgon dava. Engoliu o pobre animal, e de olhos fechados, ainda sentiu-o se debater em sua garganta. Ergueu-se, e de ouvidos apurados, pôde ouvir, ao longe, o barulho de água. No rosto, imprimiu um sorriso de felicidade, talvez o único sorriso que dera desde que pisou naquela ilha. Com os braços, afastava os cipós e galhos das árvores, protegia seus olhos dos espinhos, esmurrava alguma aranha presa em alguma teia. Corria em linha reta, sentindo aquele delicioso barulho d’água ecoar em seus ouvidos, como uma sinfonia de Mozart: a cada passo que dava, os ruídos iam crescendo, crescendo em seus ouvidos, até que, quase cego pela luz do sol, coçou os olhos acostumados ao escuro, para ter certeza de que aquilo era um sonho ou não: parado sobre uma clareira, sobre seus olhos estendia-se uma pequena cachoeira, que derramava água cristalina sobre um pequeno lago de peixes coloridos.
Jogou o corpo contra a água, abrindo a boca para matar sua sede, e as mãos para matar sua fome, para agarrar algum dos peixes. Seu corpo estava tombado sobre o chão, suas roupas estavam secas. Abrindo os olhos com cuidado, viu a grama seca balançar com um vento que acabara de soprar. O barulho de água havia sumido, apenas o silêncio reinava em seus ouvidos. Levantou seu corpo dolorido, e atônito, olhou para os lados, vendo apenas algumas pedras, terra e grama. Onde estavam a água e os peixes? Tocava tudo ao seu redor, tentando sentir, pelo menos, uma gota d’água na ponta de seu dedo. Chorando, dava socos no ar, amaldiçoando aquele seu mofino destino.
(continua...)

10.6.08

Homo Hominis Lupus (primeira parte).


Ele sentiu medo das próprias mãos. Olhou-as por um longo tempo, analisando cada detalhe de suas unhas sujas, cada ponta de seus dez dedos, mas ainda não conseguia entender o porquê daquela faca estar deitada na palma de suas mãos. A lâmina era cálida, e brilhava diabolicamente com a luz lunar. Ele desviou o olhar de seu próprio corpo, olhou ao seu redor, e teve como trilha sonora o farfalhar das folhas no alto das copas das árvores, o ruído fúnebre do vento sorrateiro e a pesada respiração de Apollyon; sua figura macilenta agora perambulava como um fantasma maldito no meio das gigantescas árvores, que erguiam-se como agulhas negras perfurando o céu sombrio.
- Venha, Demogorgon! Cá já estamos perdidos neste paraíso amaldiçoado, comendo apenas o vento vomitado pelas montanhas e ilusões de uma liberdade longínqua. Nosso corpo implora por comida, nossa alma, por tranqüilidade...
- Tranqüilidade, Apollyon? Como descansaremos em paz, sabendo que nosso amigo dormirá em nossas entranhas? Como poderemos cerrar os olhos, e termos belos sonhos, tendo o sentimento de agonia pesando em nossas consciências?
- Então morras de fome! Pereça na escuridão da noite, morda teu próprio corpo e mastigue a tua própria carne. Não vês que é suicídio, isso o que fazes? Tentar esconder-te atrás do teu moralismo não vai adiantar em nada. Viva! Ame tua vida, ama-te. Não pelo prazer, mas sim pela sobrevivência... Ajoelhe-se neste chão de terra, e comigo, venha banhar-te em sangue morno e saciar a tua fome!
Ele desviou os olhos de Apollyon, como se agora temesse aquela imagem que há tanto tempo conhecia, como se aquela face pálida nunca tivesse feito parte de suas lembranças, como se aquelas feições tétricas fossem estranhas aos seus olhos. Ele olhou novamente para as mãos, os braços, olhou-se como se aquele corpo não fosse seu, se estivesse deslocado, perdido em um espaço vazio. Sentiu um estranho arrepio no corpo quando dera alguns passos à frente, aproximando-se da sombra caída sobre a grama seca. A lua iluminou parcialmente o corpo estendido no chão, como um farol na ponta da praia, apontando para o fundo negro do mar, um navio naufragado. Apollyon fixou os olhos opacos no próprio rosto refletido numa poça de líquido negro.
- Fome! Tenho fome! – gritou Apollyon, erguendo os braços em direção ao céu obscuro, como se exaltasse forças invisíveis – Esse desejo maldito que esmaga minhas entranhas, raspa com agonia o interior de minh’alma... Esse desejo tão natural, tão desesperador... Esse desejo... que mata.
Como um cão sarnento e abandonado, ajoelhou-se sobre a terra seca, farejando como animal cada parte daquele corpo frígido. Ele sacou das vestes imundas de terra, suor e sangue, um pequeno punhal que costumava carregar consigo em todas as viagens. Como um abutre faminto em busca de carne putrefata, pousou suas garras no cadáver e rasgou-lhe a roupa que cobria o corpo. Pobre humano, esfaqueado de loucuras e desejos! A ponta da lâmina deslizou como serpente sobre a pele branca do defunto, derramando sobre a terra um filete de sangue.
- Não! Pare com essa loucura! Já fizemos demais, matá-lo...! Não podemos prosseguir com este ato insano e...
-... Vital! Este ato é insano e vital, Demogorgon.
- Agora sei, mais do que nunca, de como nós, relés seres humanos, somos frágeis e quebradiços. Não irei participar dessa loucura, Apollyon! Jamais irei manchar meus lábios de sangue humano.
Apollyon não respondera: com as mãos pousadas levemente sobre a barriga do morto, abriu-lhe com a ponta dos dedos o corte que fizera com seu punhal. A neblina espessa flutuava por entre as árvores grotescas, onde Demogorgon, olhando para o horizonte, tinha a forte impressão de estar cercado por centenas de espectros esfumaçados, que caminhavam lentamente, sem rumo, como se estivessem a pagar os pecados cometidos em vida. Ele afastou-se bruscamente, dando alguns passos para trás, ao assistir, com horror, a cena que se passara aos seus olhos: Apollyon, ajoelhado, agarrava com as mãos trêmulas um punhado de miúdos ensangüentados, vindos das entranhas do cadáver, e levava à boca com um estranho desejo que cintilava em seus olhos castanhos.
Sem dar-se conta do chão que estremecia embaixo de seus pés, tropeçou de costas em uma das tantas rochas cravadas por entre a grama seca, sentindo seu corpo desmoronar paulatinamente em cima de uma poça de bile criada por uma de suas fortes ânsias de vômito. Demogorgon ergueu-se e correra tão rapidamente sem nenhuma direção, que quando deu por si próprio, estava parado, olhando diretamente para uma lua cheia e mística pairada no céu, boiando sobre um mar de escuridão. Uma estranha sonolência cobrira seus olhos com mãos pesadas, anestesiou seu corpo de toda dor e tombou-o sobre o gélido chão rochoso banhado de luz. Adormecera.
(continua...)

5.6.08

Single 1


Na verdade, queria sumir,

parar num lugar bem longe daqui,

onde não houvesse notas erradas,

nem tropeços pela estrada,

nem chuva nas noites de verão.


Na verdade, queria chorar,

tomar chuva e bem alto gritar,

soltar um palavrão,

dizer qualquer coisa,

dizer que nada mais me mata

do que essa solidão.


Queria dizer que te amo,

e com verdade,

ouvir você dizer que me quer.

As canções mais belas

são as que mais me fazem

pensar em você;

As canções mais tristes,

são as que me fazem

tentar te esquecer.


26.3.08

A Lua e o Girassol


Eu vou contar uma história que pode ter acontecido com qualquer planta ou pedra, hoje ou amanhã, ou em qualquer época: é sobre o amor do Girassol e a Lua. Mas é uma história triste, vou alertar, e fica a critério de vocês porem em alguém a sua devida culpa, se é que é certo alguém culpar:

O Girassol morava em um campo amarelo
Junto de sua família e amigos,
Mas não era feliz,
Pois tudo era certo.
De dia acordava,
E no resto dele,
Até seu fim,
Tinha que se virar
Para um cara chamado Sol,
Que nenhum pouco se encantava.
Ficava ali parado,
Por mera obrigação,
Para se alimentar, crescer,
Sem nenhuma diversão.
E aquilo era todo o dia,
E o coitado, meu Deus!,
Nada entendia
O motivo daquela sua sina;
Ficava pensando em como a sua vida
Era vazia,
Como um copo cheio de ar,
Como um coração que não tem
Sangue a circular.
E o Girassol por ninguém
Podia se apaixonar,
Pois estava preso
À laços que não podia cortar.
Quando a noite cobria o céu,
Era o aviso para ir dormir,
Coisa que fazia sempre,
Sem ao mesmo insistir.
Fechava os olhos, mas não dormia.
Apenas pensava em como a vida
Devia ser bonita,
Mas por ela não sorria,
Pois motivo não havia.
Mas um dia, por acaso,
Seus olhos ele abriu
Quando a noite o céu cobriu.
Ali no céu,
Viu um manto de estrelas
E no peito,
Nasceu uma única certeza:
Era a coisa mais bonita que já viu.
A Lua chegou grandiosa,
Cheia de esplendor,
Iluminando o caminho de perdidos
Que na vida não havia sentido.
O Girassol lançou-lhe um sorriso,
A Lua, envergonhada, apenas minguou,
E quando menos esperava,
O dia novamente raiou;
De seus olhos,
Uma lágrima rolou
E o Girassol, amargurado,
Pela primeira vez se apaixonou.
A vontade de reencontrá-la
Foi crescendo a cada dia
E o Girassol apenas de noite sorria.
Seus pais estranharam
Ele ali todo torto
De lado errado, ao contrário,
E o Girassol, pro Sol,
Ele não mais ligava:
A Lua havia conquistado seu coração.
A Lua, tímida, toda vez minguava,
E nem um sorriso pro
Girassol ela dava.
Quando a Lua abria a noite,
Esperava ali no alto
Mais um sorriso daquela flor,
Mas não conseguia retribuir
Pois a timidez era seu ponto fraco;
E sempre minguava, esperando
A coragem tomar conta da sua alma
Mas um dia ela apareceu,
Grande, gorda, redonda,
Tapou com grandeza
Aquele Sol que a todos aquecia,
E fez o céu escurecer.
Todos os girassóis no campo
Com espanto se viraram.
A Lua então chorou,
Pois, caída sobre a relva,
Estava morto o Girassol,
Que pereceu carente de calor,
Não ligava mais para o Sol,
Doente de todo aquele amor.
A Lua, então,
Da frente do Sol saiu,
E instantes depois,
Uma grande chuva caiu:
Todos os girassóis no campo
Disseram que a chuva
Era lágrimas
Da tal Lua cheia de beleza.
O solo acolheu dia após dia,
Fragmentos do Girassol,
E anos depois,
Sementes seu corpo virou.

A quem diga que a culpa foi da Lua, outros, do Sol, e até mesmo disseram que a culpa foi toda do Girassol: eu não dou opinião, pois nada sei sobre coisas do coração. Mas, o que posso afirmar, sem nenhuma culpa, é que a Lua, tão tímida, nunca gostou da chuva.

23.3.08

A Metamorfose da Dor


Olho-me no espelho por um segundo, e vejo que muito mudou. Os pêlos sobre o queixo anunciam a morte da minha infância, os cortes no meu braço gritam constantemente sobre meus olhos, pedindo para que eu tenha consciência de que algo está errado. Os meus brinquedos foram queimados logo após o primeiro tapa na cara, me fazendo dar de cara com esse mundo frio e sujo, que tanto tenho medo. Mãe, por favor, deixe-me voltar a me encostar em sua placenta, sentir-me protegido em seu ventre, e não sentir o frio que mata lá fora; por favor, mãe, deixe-me ser novamente aquele espermatozóide esperto e ligeiro! Juro que desta vez vou fazer certo: vou errar o caminho de encontro ao óvulo. Se deixasse de existir, traria liberdade aos meus sapatos, que não seriam mais obrigados a sentir o meu chulé, traria alivio à minha cama, que não seria mais obrigada a sentir o peso do meu corpo, e traria alegria ao box e ao chuveiro, que não seriam mais obrigados à me ouvir chorando toda vez que chego da escola. Traria benefícios à pia, aos panos de prato, à parede do lado da cadeira, aos cadernos rabiscados, as aulas de Matemática. Engasgue com suas lágrimas e morra, Leandro... As palavras viram letras.
Estou completamente perdido nesse espaço vago e branco, tento fazer o mínimo de gestos, pois tudo que toco é tão frio, que me dói o peito. Onde está a luz lá fora? Sinto que meu coração vai se tornando cada vez mais daltônico, e vai chegar a um ponto que cor alguma irei enxergar. O choro é preso com a respiração, que dói profundamente a cada instante. O medo, o medo, o medo, o medo. O que vai acontecer amanhã? Será que essa corda no pescoço vai diminuir gradativamente? E depois? Será que meu corpo vai ficar estatelado no chão? Será que vou conseguir algum pedaço de madeira para me segurar, e não me afogar mais ainda nessa tormenta de medos e tristezas? O que aconteceu comigo? Nada mais faz sentido. O ovo frito está salgado demais, o miojo duro de mastigar. Minha autodestruição é lenta e perversa, é lenta. O quarto escuro se torna uma fortaleza, e os livros meu abrigo. Não há frestas sobre as muralhas, toda luz do céu parece ser as luzes de lâmpadas queimadas. Estou perdido. Olha como fiquei: mais uma merda jogada na calçada, uma merda saída pelo cú da minha mãe. E meus pais? Paredes que vão se fechando a cada dia, me fazendo ficar sufocado e me afogar em lágrimas. Meu irmão? Um motivo, o único, que me faz sorrir. Mas no momento, nem ele me faz sorrir mais.
Olha, pai, enfia mais uma vez essa faca dentro de mim, deixa-me sentir mais uma vez essa dor e tentar compreender porquê a vida é assim. Olha, mãe, deixe de sorrir para mim, deixe de usar palavras no diminutivo quando se referir à mim, me mata com o seu silêncio, me enfia novamente em sua barriga e me aborta, joga fora esse feto crescido na privada e dê a descarga, deixe-me vagar feliz pelos encanamentos e me misturar com as fezes, coisas que realmente eu sou. Leandro, se mate, tente criar coragem em suas angústias, pois você sabe muito bem que a vida não possui mais sentido nenhum! Por que você anda? Por que você vive, e por que você ri? Pare de dar suas falsas risadas, pois você sabe que amor nenhum à dentro de ti. Tudo está empoeirado, petrificado. É seu próprio veneno que está engolindo dia-a-dia. Não há porquê continuar com esse suicídio diário, com essa tortura física e espiritual. O que você é? Esse vazio na cabeça amolece minhas mãos. Meu dia não amanhece, morre desde cedo. Sou apenas o medo em pedaços e com claustrofobia, encravado num espaço branco e vazio.

19.3.08

Segunda-Feira


Abri os olhos,
Mas não acordei.
Coloquei as roupas,
Mas ainda estava nu;
Nos pés, apenas a frieza
De um chão sem tapetes.
Comi alguma coisa,
Não tinha nada no estômago.
Sai pra rua,
Mas ainda estava em casa,
Dormindo entre os cobertores;
Me balançava entre pessoas,
Ouvia qualquer coisa,
Mas ainda estava surdo
Com o silêncio do meu quarto.
Derrubei qualquer coisa,
Pulei qualquer poça,
Cumprimentei qualquer pessoa,
Mas ainda soterrado em travesseiros
Estava eu buscando alguém
Para sonhar.
Olhava para os lados,
Sorrisos automáticos,
E eu, ainda,
Me recusava a levantar.
Amei qualquer coisa,
Chorei por qualquer pessoa,
Cortei qualquer pedaço,
Estava eu a me perder
Em escuridão, ainda
Andando sonâmbulo
Sobre poças de lágrimas.
Por ali me gritaram,
Era ela! Era ele!
Felicidade passageira,
Viajante dolorosa,
Carregava nas malas
Algumas angústias.
Era ela! Era ele!
De boina ou de boné,
Carregava na cabeça ponteiros,
Era o despertador,
Me chamando pra viver.

16.3.08

Flores Cortadas [trecho]


No emaranhado dos cabelos negros de Ana, Abel enroscou seus dedos. Puxou aquele pescoço feito de cristal, tão frágil, tão belo. Ana, então, adentrou naquela perdição, e Abel engoliu aquela palavra no meio dos lábios daquela mulher que parecia não existir. Ela deixava suas mãos afogarem-se sobre o mar ondulado de cabelos, e ele tinha a alma povoada de sensações indefinidas. Abel deixava sua língua serpentear por entre aquelas palavras úmidas e mudas de Ana, aquelas palavras que possuíam gosto de bala de hortelã.

11.3.08

Ódio


Vou puxar seus pés,
Arrancar seus cabelos,
Esmagar suas monossílabas,
Seus sussurros e alegrias,
Apertar os seus medos
E fazer deles um suco amargo
E enfiá-lo goela abaixo.
Vou cortar os seus pulsos
E ver se deles saem poesias,
Aquelas que eu te dei.
Vou abrir a minha cova novamente,
E lá te empurrar,
Enterrar-te viva,
Mas não, sem antes,
Estuprar-te com os meus lamentos,
Esmurrar-te com as minhas lágrimas,
E por fim,
Quando estiveres morta,
Dizer que te amei,Como nunca amei ninguém.

8.3.08




O azul das árvores misturava-se com o roxo das borboletas que voavam idiotas pelo vento do oeste. A Tristeza sentou-se sobre uma das pedras do campo rochoso, convidando H. à sentar-se ao seu lado. Este recusou, continuando em pé, olhando fixamente para o horizonte que se perdia sobre os tons de violeta. Tristeza afastou com leveza as mexas de cabelo do rosto, abriu a palma da mão pálida e lá pousara uma das borboletas roxas, que batia as asas, estonteada; alguns segundos depois, derrubou o inseto morto nas gramas, e junto com ele, algumas lágrimas que congelaram o pequenino animal transformando-o em uma mínima pedra de cristal.
“Sou tão sublime”, murmurou ela, sorrindo, de rosto molhado “Vocês, humanos, tentam me evitar, mas sou tão parte de vocês quanto um braço, uma perna”.
“Você nos faz sofrer” argumentou H., virando abruptamente à ela.
Tristeza, então, ergueu-se, sentindo o raio morno do sol tingir sua face de laranja. Ela, então, com um estalar de dedos, fez a luz do sol apagar-se quase que imediatamente, tirando das borboletas seu roxo, o azul das árvores, o vermelho das rosas no campo. H. sentiu um calafrio percorrer como serpente sobre seu corpo trêmulo, a Tristeza virou-se, sua face sombria encarava-o quase que dolorosamente.
“Vocês que sofrem por livre e espontânea vontade: escolhem os caminhos mais difíceis à percorrer, mesmo sabendo de seus perigos, criam problemas para sentirem-se ocupados: sou uma atividade para os homens”.
“Então acha que somos masoquistas?”.
“Acho”.
Tristeza tocou levemente seus dedos sobre a face rija de H., que tentou afastar-se dando alguns passos para trás, mas permanecera no mesmo local. Naquele exato instante, ele sentiu suas pernas amolecerem e um frio congelar seu corpo, carcaça abatida. Quando menos esperara, derramou sobre a face suas lágrimas guardadas há tanto tempo, que já nem sabia que as tinha; correu em meio ao campo de rosas, pulando cada rochedo em sua frente, vomitando os gritos empoeirados. Tapando o rosto com as mãos em concha, chorava por há tanto tempo não ter chorado, gritava odiando o iceberg que seu corpo se transformara, afundado em lembranças dolorosas. Atrás, separados por muitos metros distância, a Tristeza caminhou em sentido contrário, onde a silhueta de seu corpo sumia na paisagem que paulatinamente ia ganhando novamente cor, o violeta engolia o contorno negro de seu corpo, e já não mais H. a vira por ali. Mas podia senti-la.

4.3.08

mad.dream.crazy.life.bracket.


Já eram cinco da tarde e o sangue ainda não havia secado.
Na minha garganta ainda havia aquele resto de saliva com gosto do café de duas horas atrás. Os ponteiros do meu relógio de pulso brilhavam escondidos dentro do bolso da calça, e eu ainda não havia tomado coragem para fazer nada. O isqueiro estava no bolso da camisa de -----, e não seria eu que iria pegá-lo, portanto, não seria eu que iria fumar. O medo era como cordas invisíveis que, além de prender meus membros, enforcava-me a garganta com milhões de angustias em forma de suor. Resolvi molhar os dedos novamente no copo vermelho, e voltei a escrever nas paredes tudo que eu sentia, em forma de poesia. Eu sei rimar quando quero. Mas poesias são muito mais do que rimas; poesia é beleza em forma de palavras, por mais que ela seja triste ou alegre. Minhas poesias nunca são alegres, talvez seja porque a vida não é divertida. Não há a metade de um átomo de alegria em cada sílaba que escrevo. Cada vírgula, cada letra, cada rima, cada ponto de interrogação é um beco escuro onde minhas amarguras se escondem.
As cordas da minha concentração romperam-se de repente, quando ----- olhou de esguelha, com aqueles olhos opacos que furaram meu estômago tão de repente quanto deixei cair o copo de sangue das mãos. Ele abriu a boca, como se ele tivesse uma palavra entalada no meio dos lábios, e torci para que não dissesse nada, para que não soltasse nenhum ruído da boca que me obrigasse a tapar os ouvidos e recomeçar a chorar. Eu tiro da mente mais algumas palavras, e lá fora o sol começava a se pôr, retirando-se sorrateiramente entre as nuvens quebradas. ------ parou de me olhar, e sem que eu tivesse que fazer aquilo, ele fechou os olhos sozinho, e percebi que sua respiração cada vez mais diminuía de ritmo. Por fim, parou completamente. Tive vontade de estourar cada osso da costela daquele homem, e agarrar com minhas próprias mãos os seus pulmões, talvez cheios de buracos pelo cigarro, e assoprar para que voltasse a respirar, e agonizar no chão da sala. Agora o cadáver estava à minha frente, e eu podia senti-lo. Limpei as mãos na torneira do banheiro, pintei de vermelho a pia de mármore, e sequei-me na calça. Tirei debaixo da lista telefônica algumas folhas em branco, passei à limpo todas as poesias no papel, e guardei-as no bolso de trás da calça jeans. Liguei, sem saber como ligava, a vitrola no canto da sala, e comecei a ouvir um blues que cheirava a uísque e cigarro. Banhei todos os cômodos da casa com querosene, e enquanto isso, sentia falta dos gritos de ----- excitando minha imaginação. Agachei sobre o corpo, tive vontade de socar aquele rosto calmo e nada inspirador, mas nada fiz além de cuspir em cima dele. Retirei o isqueiro do bolso da camisa, e supus que ------ fumasse à todo instante, pelo pouco de gás armazenado ali. O fogo começou a se espalhar pela camisa cor-de-rosa. O fogo bailava com paciência sobre o tecido de algodão, e já começava a penetrar sobre a pele. O cheiro de carne assada era tão grande, que me veio à cabeça o churrasco da noite passada na Editora Medéia. Sai do apartamento, trancei a porta, deixando cair as chaves no bolso. Mesmo antes de sair, o cheiro de madeira queimada exalava por debaixo da porta, e supus que o fogo já havia se alastrado. Desci as escadas com passos lentos, o suor banhava meu corpo que aderia à roupa. Acendi um cigarro, finalmente, mas joguei-o pelo bueiro imaginando os pulmões pretos do cara. O cardápio da noite seria pulmões assados.

2.3.08

Charlie


Ele não se lembrava de nada: não se lembrava do que havia comido ontem, não havia se lembrado também do que comeu hoje, e provavelmente não se lembrará do que vai comer amanhã. Sua miserável memória era tão gasta quando as botas que costumava calçar, sem se importar em molhar os pés nos dias de chuva. A geladeira era repleta de recados que iam de lembretes escritos em folhas de cadernos, até pequenos post-its escandalosamente coloridos. Seus atrasos em encontros familiares já não eram mais surpresa, e todos os primos, tias e avós haviam se acostumado com a cara de vergonha que ele fazia a cada jantar. Mas Charlie era esperto: sempre encontrava pelo caminho algum motivo para puxar assunto à mesa de jantar, naquelas tediosas reuniões de família.
Mesmo se existissem palavras para defini-lo, elas seriam invisíveis. Ao lado de Lola, cantava em todas as noites frias e sem dono à beira da janela do quarto, esquecendo-se do início de suas canções e quase sempre do refrão também: algum dó, ou um sol, ou um mi, era esquecido pelo caminho. Depositava com zelo e carinho Lola no colo, e ajeitava suas cordas (no qual tinha orgulho de denominá-las de cabelo) e hora e outra declarava seu amor por alguém que não existia; suas crises de rinite eram tão freqüentes que a presença do lenço vermelho no bolso de trás da calça tornou-se fundamental e até mesmo costumeira. Costumava sair cedo de casa, de barriga vazia com uma ou duas xícaras de café, e voltava ao entardecer, pois se esquecia quase sempre do caminho de volta para casa.
Achava Bob Dylan um grande mal educado: sempre desabafava seus problemas (na maioria das vezes inventados) e Dylan cantava e tocava, e nunca o escutava. Era o mesmo com a Janis, com o Johnny Cash, e todos eles eram sem educação em sua farta imaginação carente. Encheu-se tanto de falar, que apenas escutava, e aprendera, com isso, que todos eles o compreendiam. A partir daquele momento, as suas folhas ficaram com o cargo de psicólogos. Isso, quando não se esquecia dos problemas.

28.2.08

Necessidades


Não ando mais triste, mas sinto que ainda falta algum pedaço de mim. As coisas tendem a melhorar daqui pra frente, mas creio que esse “daqui pra frente” vá doer. Ninguém gosta de sofrer, até eu, mas sinto a necessidade de suprir, em alguém, algo que falta em mim. Eu não sei o que falta. Não sei se é calma, não sei se a pessoa daqui de dentro se perdeu em algum lugar, ou simplesmente congelou. Sinto-me como uma estátua, que de agora em diante vai prestar mais atenção nas aulas, principalmente as de Matemática. Preciso melhorar as notas: não por mim, mas por meus pais. Eles têm a necessidade de ver o boletim todo azul, mas não vêem o que realmente sentia, para que as notas saíssem daquele jeito. Não sei se não sou compreendido, ou se é eu que não compreendo as coisas, pois algumas coisas ainda não estão esclarecidas. Ultimamente, a vontade de ler Bukowski, Jack Kerouack ou outro escritor Beat qualquer vem crescendo à cada instante. A vontade de fumar sete cigarros seguidos, beber uísque e sair sem rumo por aí, também. Algo me diz que logo, logo vou fumar meu primeiro baseado, e irei acabar me sentindo culpado por isso. Tenho medo de dar a minha cara pra bater. A vida é uma guerra, uma luta. Estou ferido.
Pois é, o ferro de que eu achava ser feito, enferrujou. A imortalidade que eu sentia ter, evaporou-se com um sopro dado pela vida... Vida? Mas o que é isso? Um instrumento de tortura que nos faz crescer? Sinto-me tão vazio, que pensei que dor alguma iria sentir. Me fodi. Ando me esquecendo de falar com Deus. Talvez, acho tempo pra tudo, menos pra uma conversa com Ele. Não sei, mas toda vez que “falo” com Deus, me sinto um idiota, em pensar que, talvez, eu esteja falando sozinho. Louco. Dizem que todos os idiotas têm um poucos de loucos... Óh, errei! São os gênios. Talvez, a mesma coisa.

24.2.08

São Paulo

Eu não me lembro de muita coisa, talvez eu não me lembre de quase nada. As únicas imagens que vêem à minha cabeça, são de um vermelho intenso e sujo, que rodopiam sobre meus neurônios, pintando assim uma obra de arte abstrata. O vermelho em minha mente, era sangue espalhado pelo tapete da sala. O sangue era vivo, eu podia senti-lo. A sola do meu tênis tocava-o. Úmido. Frio, sujo. Era assim que as coisas iriam ser dali para frente.
Eu estava mais pra Jane, perdido naquela louca floresta de pedra. São Paulo era um imenso amontoado de cores e culturas. Era poesia ruminada e cagada em um imenso lugar cheio de prédios. São Paulo não era São Paulo, era um ser andrógino que tinhas seus grandes defeitos e suas qualidades, era borrões de tinta jogados sobre uma tela cinza, uma fotografia mal tirada, mas que ainda carregava em si sua beleza. Havia várias vacas, vários seres andróginos, vários pintores e fotógrafos ali. Pessoas era o que não faltava. Uma coriza de gente. As ruas entupidas. A meleca verde era eu, e todos sem esperança num país de merda. Eu pegava uma mecha do meu cabelo, enrolava e comprimia. O relógio não parava. Você não podia parar, tinha sempre que correr, mesmo cansado. Se parasse, morria, virava pedra. Milhões de estátuas habitavam São Paulo. Um lindo museu parado.
O melhor daquela cidade, era você poder andar por ela, pé no chão, olho no cinza. Eu realmente me sentia perdido, por mais que eu conhecesse aquele lugar como a palma das minhas mãos. Era só acender um cigarro, que as coisas ferviam. Eu tinha alergia à pessoas, e quanto menos elas ficavam perto de mim, melhor eu ficava. O contato humano realmente era dispensável, exceto na hora da transa, é claro. De vez em quando é bom jogar a porra toda pra fora, sem uma punheta. Nada que a rua Augusta e uns trocados não dêem um jeito. Parei na calçada e esperei o ônibus. Prefiro matar uma pessoa do que esperar um ônibus. Entrei, e me sentei num banco. Era no ônibus quando eu mais pensava na vida. Copo de café.

23.2.08

Mentiras

Desde pequeno, escrevia mentiras. Nas cartas, dizia que meu pai era meu herói, mas sabia que ele não ia me salvar, muito menos me ensinar a voar. Nas cartas, escrevia que minha mãe era minha melhor amiga, mas eu sabia que quase nenhuma palavra nós trocamos, e ela nunca soube me entender. Nunca escrevi cartas ao meu irmão, pois sei que também ia mentir. Então, a sinceridade fica pra dentro de mim, guardada, escondida, oculta, até um dia que eu vier a me arrepender de não expressar o que realmente eu sentia. Agora, eu sei que meu maior medo é sentir MEDO, e sempre saber errar.