26.3.08

A Lua e o Girassol


Eu vou contar uma história que pode ter acontecido com qualquer planta ou pedra, hoje ou amanhã, ou em qualquer época: é sobre o amor do Girassol e a Lua. Mas é uma história triste, vou alertar, e fica a critério de vocês porem em alguém a sua devida culpa, se é que é certo alguém culpar:

O Girassol morava em um campo amarelo
Junto de sua família e amigos,
Mas não era feliz,
Pois tudo era certo.
De dia acordava,
E no resto dele,
Até seu fim,
Tinha que se virar
Para um cara chamado Sol,
Que nenhum pouco se encantava.
Ficava ali parado,
Por mera obrigação,
Para se alimentar, crescer,
Sem nenhuma diversão.
E aquilo era todo o dia,
E o coitado, meu Deus!,
Nada entendia
O motivo daquela sua sina;
Ficava pensando em como a sua vida
Era vazia,
Como um copo cheio de ar,
Como um coração que não tem
Sangue a circular.
E o Girassol por ninguém
Podia se apaixonar,
Pois estava preso
À laços que não podia cortar.
Quando a noite cobria o céu,
Era o aviso para ir dormir,
Coisa que fazia sempre,
Sem ao mesmo insistir.
Fechava os olhos, mas não dormia.
Apenas pensava em como a vida
Devia ser bonita,
Mas por ela não sorria,
Pois motivo não havia.
Mas um dia, por acaso,
Seus olhos ele abriu
Quando a noite o céu cobriu.
Ali no céu,
Viu um manto de estrelas
E no peito,
Nasceu uma única certeza:
Era a coisa mais bonita que já viu.
A Lua chegou grandiosa,
Cheia de esplendor,
Iluminando o caminho de perdidos
Que na vida não havia sentido.
O Girassol lançou-lhe um sorriso,
A Lua, envergonhada, apenas minguou,
E quando menos esperava,
O dia novamente raiou;
De seus olhos,
Uma lágrima rolou
E o Girassol, amargurado,
Pela primeira vez se apaixonou.
A vontade de reencontrá-la
Foi crescendo a cada dia
E o Girassol apenas de noite sorria.
Seus pais estranharam
Ele ali todo torto
De lado errado, ao contrário,
E o Girassol, pro Sol,
Ele não mais ligava:
A Lua havia conquistado seu coração.
A Lua, tímida, toda vez minguava,
E nem um sorriso pro
Girassol ela dava.
Quando a Lua abria a noite,
Esperava ali no alto
Mais um sorriso daquela flor,
Mas não conseguia retribuir
Pois a timidez era seu ponto fraco;
E sempre minguava, esperando
A coragem tomar conta da sua alma
Mas um dia ela apareceu,
Grande, gorda, redonda,
Tapou com grandeza
Aquele Sol que a todos aquecia,
E fez o céu escurecer.
Todos os girassóis no campo
Com espanto se viraram.
A Lua então chorou,
Pois, caída sobre a relva,
Estava morto o Girassol,
Que pereceu carente de calor,
Não ligava mais para o Sol,
Doente de todo aquele amor.
A Lua, então,
Da frente do Sol saiu,
E instantes depois,
Uma grande chuva caiu:
Todos os girassóis no campo
Disseram que a chuva
Era lágrimas
Da tal Lua cheia de beleza.
O solo acolheu dia após dia,
Fragmentos do Girassol,
E anos depois,
Sementes seu corpo virou.

A quem diga que a culpa foi da Lua, outros, do Sol, e até mesmo disseram que a culpa foi toda do Girassol: eu não dou opinião, pois nada sei sobre coisas do coração. Mas, o que posso afirmar, sem nenhuma culpa, é que a Lua, tão tímida, nunca gostou da chuva.

23.3.08

A Metamorfose da Dor


Olho-me no espelho por um segundo, e vejo que muito mudou. Os pêlos sobre o queixo anunciam a morte da minha infância, os cortes no meu braço gritam constantemente sobre meus olhos, pedindo para que eu tenha consciência de que algo está errado. Os meus brinquedos foram queimados logo após o primeiro tapa na cara, me fazendo dar de cara com esse mundo frio e sujo, que tanto tenho medo. Mãe, por favor, deixe-me voltar a me encostar em sua placenta, sentir-me protegido em seu ventre, e não sentir o frio que mata lá fora; por favor, mãe, deixe-me ser novamente aquele espermatozóide esperto e ligeiro! Juro que desta vez vou fazer certo: vou errar o caminho de encontro ao óvulo. Se deixasse de existir, traria liberdade aos meus sapatos, que não seriam mais obrigados a sentir o meu chulé, traria alivio à minha cama, que não seria mais obrigada a sentir o peso do meu corpo, e traria alegria ao box e ao chuveiro, que não seriam mais obrigados à me ouvir chorando toda vez que chego da escola. Traria benefícios à pia, aos panos de prato, à parede do lado da cadeira, aos cadernos rabiscados, as aulas de Matemática. Engasgue com suas lágrimas e morra, Leandro... As palavras viram letras.
Estou completamente perdido nesse espaço vago e branco, tento fazer o mínimo de gestos, pois tudo que toco é tão frio, que me dói o peito. Onde está a luz lá fora? Sinto que meu coração vai se tornando cada vez mais daltônico, e vai chegar a um ponto que cor alguma irei enxergar. O choro é preso com a respiração, que dói profundamente a cada instante. O medo, o medo, o medo, o medo. O que vai acontecer amanhã? Será que essa corda no pescoço vai diminuir gradativamente? E depois? Será que meu corpo vai ficar estatelado no chão? Será que vou conseguir algum pedaço de madeira para me segurar, e não me afogar mais ainda nessa tormenta de medos e tristezas? O que aconteceu comigo? Nada mais faz sentido. O ovo frito está salgado demais, o miojo duro de mastigar. Minha autodestruição é lenta e perversa, é lenta. O quarto escuro se torna uma fortaleza, e os livros meu abrigo. Não há frestas sobre as muralhas, toda luz do céu parece ser as luzes de lâmpadas queimadas. Estou perdido. Olha como fiquei: mais uma merda jogada na calçada, uma merda saída pelo cú da minha mãe. E meus pais? Paredes que vão se fechando a cada dia, me fazendo ficar sufocado e me afogar em lágrimas. Meu irmão? Um motivo, o único, que me faz sorrir. Mas no momento, nem ele me faz sorrir mais.
Olha, pai, enfia mais uma vez essa faca dentro de mim, deixa-me sentir mais uma vez essa dor e tentar compreender porquê a vida é assim. Olha, mãe, deixe de sorrir para mim, deixe de usar palavras no diminutivo quando se referir à mim, me mata com o seu silêncio, me enfia novamente em sua barriga e me aborta, joga fora esse feto crescido na privada e dê a descarga, deixe-me vagar feliz pelos encanamentos e me misturar com as fezes, coisas que realmente eu sou. Leandro, se mate, tente criar coragem em suas angústias, pois você sabe muito bem que a vida não possui mais sentido nenhum! Por que você anda? Por que você vive, e por que você ri? Pare de dar suas falsas risadas, pois você sabe que amor nenhum à dentro de ti. Tudo está empoeirado, petrificado. É seu próprio veneno que está engolindo dia-a-dia. Não há porquê continuar com esse suicídio diário, com essa tortura física e espiritual. O que você é? Esse vazio na cabeça amolece minhas mãos. Meu dia não amanhece, morre desde cedo. Sou apenas o medo em pedaços e com claustrofobia, encravado num espaço branco e vazio.

19.3.08

Segunda-Feira


Abri os olhos,
Mas não acordei.
Coloquei as roupas,
Mas ainda estava nu;
Nos pés, apenas a frieza
De um chão sem tapetes.
Comi alguma coisa,
Não tinha nada no estômago.
Sai pra rua,
Mas ainda estava em casa,
Dormindo entre os cobertores;
Me balançava entre pessoas,
Ouvia qualquer coisa,
Mas ainda estava surdo
Com o silêncio do meu quarto.
Derrubei qualquer coisa,
Pulei qualquer poça,
Cumprimentei qualquer pessoa,
Mas ainda soterrado em travesseiros
Estava eu buscando alguém
Para sonhar.
Olhava para os lados,
Sorrisos automáticos,
E eu, ainda,
Me recusava a levantar.
Amei qualquer coisa,
Chorei por qualquer pessoa,
Cortei qualquer pedaço,
Estava eu a me perder
Em escuridão, ainda
Andando sonâmbulo
Sobre poças de lágrimas.
Por ali me gritaram,
Era ela! Era ele!
Felicidade passageira,
Viajante dolorosa,
Carregava nas malas
Algumas angústias.
Era ela! Era ele!
De boina ou de boné,
Carregava na cabeça ponteiros,
Era o despertador,
Me chamando pra viver.

16.3.08

Flores Cortadas [trecho]


No emaranhado dos cabelos negros de Ana, Abel enroscou seus dedos. Puxou aquele pescoço feito de cristal, tão frágil, tão belo. Ana, então, adentrou naquela perdição, e Abel engoliu aquela palavra no meio dos lábios daquela mulher que parecia não existir. Ela deixava suas mãos afogarem-se sobre o mar ondulado de cabelos, e ele tinha a alma povoada de sensações indefinidas. Abel deixava sua língua serpentear por entre aquelas palavras úmidas e mudas de Ana, aquelas palavras que possuíam gosto de bala de hortelã.

11.3.08

Ódio


Vou puxar seus pés,
Arrancar seus cabelos,
Esmagar suas monossílabas,
Seus sussurros e alegrias,
Apertar os seus medos
E fazer deles um suco amargo
E enfiá-lo goela abaixo.
Vou cortar os seus pulsos
E ver se deles saem poesias,
Aquelas que eu te dei.
Vou abrir a minha cova novamente,
E lá te empurrar,
Enterrar-te viva,
Mas não, sem antes,
Estuprar-te com os meus lamentos,
Esmurrar-te com as minhas lágrimas,
E por fim,
Quando estiveres morta,
Dizer que te amei,Como nunca amei ninguém.

8.3.08




O azul das árvores misturava-se com o roxo das borboletas que voavam idiotas pelo vento do oeste. A Tristeza sentou-se sobre uma das pedras do campo rochoso, convidando H. à sentar-se ao seu lado. Este recusou, continuando em pé, olhando fixamente para o horizonte que se perdia sobre os tons de violeta. Tristeza afastou com leveza as mexas de cabelo do rosto, abriu a palma da mão pálida e lá pousara uma das borboletas roxas, que batia as asas, estonteada; alguns segundos depois, derrubou o inseto morto nas gramas, e junto com ele, algumas lágrimas que congelaram o pequenino animal transformando-o em uma mínima pedra de cristal.
“Sou tão sublime”, murmurou ela, sorrindo, de rosto molhado “Vocês, humanos, tentam me evitar, mas sou tão parte de vocês quanto um braço, uma perna”.
“Você nos faz sofrer” argumentou H., virando abruptamente à ela.
Tristeza, então, ergueu-se, sentindo o raio morno do sol tingir sua face de laranja. Ela, então, com um estalar de dedos, fez a luz do sol apagar-se quase que imediatamente, tirando das borboletas seu roxo, o azul das árvores, o vermelho das rosas no campo. H. sentiu um calafrio percorrer como serpente sobre seu corpo trêmulo, a Tristeza virou-se, sua face sombria encarava-o quase que dolorosamente.
“Vocês que sofrem por livre e espontânea vontade: escolhem os caminhos mais difíceis à percorrer, mesmo sabendo de seus perigos, criam problemas para sentirem-se ocupados: sou uma atividade para os homens”.
“Então acha que somos masoquistas?”.
“Acho”.
Tristeza tocou levemente seus dedos sobre a face rija de H., que tentou afastar-se dando alguns passos para trás, mas permanecera no mesmo local. Naquele exato instante, ele sentiu suas pernas amolecerem e um frio congelar seu corpo, carcaça abatida. Quando menos esperara, derramou sobre a face suas lágrimas guardadas há tanto tempo, que já nem sabia que as tinha; correu em meio ao campo de rosas, pulando cada rochedo em sua frente, vomitando os gritos empoeirados. Tapando o rosto com as mãos em concha, chorava por há tanto tempo não ter chorado, gritava odiando o iceberg que seu corpo se transformara, afundado em lembranças dolorosas. Atrás, separados por muitos metros distância, a Tristeza caminhou em sentido contrário, onde a silhueta de seu corpo sumia na paisagem que paulatinamente ia ganhando novamente cor, o violeta engolia o contorno negro de seu corpo, e já não mais H. a vira por ali. Mas podia senti-la.

4.3.08

mad.dream.crazy.life.bracket.


Já eram cinco da tarde e o sangue ainda não havia secado.
Na minha garganta ainda havia aquele resto de saliva com gosto do café de duas horas atrás. Os ponteiros do meu relógio de pulso brilhavam escondidos dentro do bolso da calça, e eu ainda não havia tomado coragem para fazer nada. O isqueiro estava no bolso da camisa de -----, e não seria eu que iria pegá-lo, portanto, não seria eu que iria fumar. O medo era como cordas invisíveis que, além de prender meus membros, enforcava-me a garganta com milhões de angustias em forma de suor. Resolvi molhar os dedos novamente no copo vermelho, e voltei a escrever nas paredes tudo que eu sentia, em forma de poesia. Eu sei rimar quando quero. Mas poesias são muito mais do que rimas; poesia é beleza em forma de palavras, por mais que ela seja triste ou alegre. Minhas poesias nunca são alegres, talvez seja porque a vida não é divertida. Não há a metade de um átomo de alegria em cada sílaba que escrevo. Cada vírgula, cada letra, cada rima, cada ponto de interrogação é um beco escuro onde minhas amarguras se escondem.
As cordas da minha concentração romperam-se de repente, quando ----- olhou de esguelha, com aqueles olhos opacos que furaram meu estômago tão de repente quanto deixei cair o copo de sangue das mãos. Ele abriu a boca, como se ele tivesse uma palavra entalada no meio dos lábios, e torci para que não dissesse nada, para que não soltasse nenhum ruído da boca que me obrigasse a tapar os ouvidos e recomeçar a chorar. Eu tiro da mente mais algumas palavras, e lá fora o sol começava a se pôr, retirando-se sorrateiramente entre as nuvens quebradas. ------ parou de me olhar, e sem que eu tivesse que fazer aquilo, ele fechou os olhos sozinho, e percebi que sua respiração cada vez mais diminuía de ritmo. Por fim, parou completamente. Tive vontade de estourar cada osso da costela daquele homem, e agarrar com minhas próprias mãos os seus pulmões, talvez cheios de buracos pelo cigarro, e assoprar para que voltasse a respirar, e agonizar no chão da sala. Agora o cadáver estava à minha frente, e eu podia senti-lo. Limpei as mãos na torneira do banheiro, pintei de vermelho a pia de mármore, e sequei-me na calça. Tirei debaixo da lista telefônica algumas folhas em branco, passei à limpo todas as poesias no papel, e guardei-as no bolso de trás da calça jeans. Liguei, sem saber como ligava, a vitrola no canto da sala, e comecei a ouvir um blues que cheirava a uísque e cigarro. Banhei todos os cômodos da casa com querosene, e enquanto isso, sentia falta dos gritos de ----- excitando minha imaginação. Agachei sobre o corpo, tive vontade de socar aquele rosto calmo e nada inspirador, mas nada fiz além de cuspir em cima dele. Retirei o isqueiro do bolso da camisa, e supus que ------ fumasse à todo instante, pelo pouco de gás armazenado ali. O fogo começou a se espalhar pela camisa cor-de-rosa. O fogo bailava com paciência sobre o tecido de algodão, e já começava a penetrar sobre a pele. O cheiro de carne assada era tão grande, que me veio à cabeça o churrasco da noite passada na Editora Medéia. Sai do apartamento, trancei a porta, deixando cair as chaves no bolso. Mesmo antes de sair, o cheiro de madeira queimada exalava por debaixo da porta, e supus que o fogo já havia se alastrado. Desci as escadas com passos lentos, o suor banhava meu corpo que aderia à roupa. Acendi um cigarro, finalmente, mas joguei-o pelo bueiro imaginando os pulmões pretos do cara. O cardápio da noite seria pulmões assados.

2.3.08

Charlie


Ele não se lembrava de nada: não se lembrava do que havia comido ontem, não havia se lembrado também do que comeu hoje, e provavelmente não se lembrará do que vai comer amanhã. Sua miserável memória era tão gasta quando as botas que costumava calçar, sem se importar em molhar os pés nos dias de chuva. A geladeira era repleta de recados que iam de lembretes escritos em folhas de cadernos, até pequenos post-its escandalosamente coloridos. Seus atrasos em encontros familiares já não eram mais surpresa, e todos os primos, tias e avós haviam se acostumado com a cara de vergonha que ele fazia a cada jantar. Mas Charlie era esperto: sempre encontrava pelo caminho algum motivo para puxar assunto à mesa de jantar, naquelas tediosas reuniões de família.
Mesmo se existissem palavras para defini-lo, elas seriam invisíveis. Ao lado de Lola, cantava em todas as noites frias e sem dono à beira da janela do quarto, esquecendo-se do início de suas canções e quase sempre do refrão também: algum dó, ou um sol, ou um mi, era esquecido pelo caminho. Depositava com zelo e carinho Lola no colo, e ajeitava suas cordas (no qual tinha orgulho de denominá-las de cabelo) e hora e outra declarava seu amor por alguém que não existia; suas crises de rinite eram tão freqüentes que a presença do lenço vermelho no bolso de trás da calça tornou-se fundamental e até mesmo costumeira. Costumava sair cedo de casa, de barriga vazia com uma ou duas xícaras de café, e voltava ao entardecer, pois se esquecia quase sempre do caminho de volta para casa.
Achava Bob Dylan um grande mal educado: sempre desabafava seus problemas (na maioria das vezes inventados) e Dylan cantava e tocava, e nunca o escutava. Era o mesmo com a Janis, com o Johnny Cash, e todos eles eram sem educação em sua farta imaginação carente. Encheu-se tanto de falar, que apenas escutava, e aprendera, com isso, que todos eles o compreendiam. A partir daquele momento, as suas folhas ficaram com o cargo de psicólogos. Isso, quando não se esquecia dos problemas.