Na minha garganta ainda havia aquele resto de saliva com gosto do café de duas horas atrás. Os ponteiros do meu relógio de pulso brilhavam escondidos dentro do bolso da calça, e eu ainda não havia tomado coragem para fazer nada. O isqueiro estava no bolso da camisa de -----, e não seria eu que iria pegá-lo, portanto, não seria eu que iria fumar. O medo era como cordas invisíveis que, além de prender meus membros, enforcava-me a garganta com milhões de angustias em forma de suor. Resolvi molhar os dedos novamente no copo vermelho, e voltei a escrever nas paredes tudo que eu sentia, em forma de poesia. Eu sei rimar quando quero. Mas poesias são muito mais do que rimas; poesia é beleza em forma de palavras, por mais que ela seja triste ou alegre. Minhas poesias nunca são alegres, talvez seja porque a vida não é divertida. Não há a metade de um átomo de alegria em cada sílaba que escrevo. Cada vírgula, cada letra, cada rima, cada ponto de interrogação é um beco escuro onde minhas amarguras se escondem.
As cordas da minha concentração romperam-se de repente, quando ----- olhou de esguelha, com aqueles olhos opacos que furaram meu estômago tão de repente quanto deixei cair o copo de sangue das mãos. Ele abriu a boca, como se ele tivesse uma palavra entalada no meio dos lábios, e torci para que não dissesse nada, para que não soltasse nenhum ruído da boca que me obrigasse a tapar os ouvidos e recomeçar a chorar. Eu tiro da mente mais algumas palavras, e lá fora o sol começava a se pôr, retirando-se sorrateiramente entre as nuvens quebradas. ------ parou de me olhar, e sem que eu tivesse que fazer aquilo, ele fechou os olhos sozinho, e percebi que sua respiração cada vez mais diminuía de ritmo. Por fim, parou completamente. Tive vontade de estourar cada osso da costela daquele homem, e agarrar com minhas próprias mãos os seus pulmões, talvez cheios de buracos pelo cigarro, e assoprar para que voltasse a respirar, e agonizar no chão da sala. Agora o cadáver estava à minha frente, e eu podia senti-lo. Limpei as mãos na torneira do banheiro, pintei de vermelho a pia de mármore, e sequei-me na calça. Tirei debaixo da lista telefônica algumas folhas em branco, passei à limpo todas as poesias no papel, e guardei-as no bolso de trás da calça jeans. Liguei, sem saber como ligava, a vitrola no canto da sala, e comecei a ouvir um blues que cheirava a uísque e cigarro. Banhei todos os cômodos da casa com querosene, e enquanto isso, sentia falta dos gritos de ----- excitando minha imaginação. Agachei sobre o corpo, tive vontade de socar aquele rosto calmo e nada inspirador, mas nada fiz além de cuspir em cima dele. Retirei o isqueiro do bolso da camisa, e supus que ------ fumasse à todo instante, pelo pouco de gás armazenado ali. O fogo começou a se espalhar pela camisa cor-de-rosa. O fogo bailava com paciência sobre o tecido de algodão, e já começava a penetrar sobre a pele. O cheiro de carne assada era tão grande, que me veio à cabeça o churrasco da noite passada na Editora Medéia. Sai do apartamento, trancei a porta, deixando cair as chaves no bolso. Mesmo antes de sair, o cheiro de madeira queimada exalava por debaixo da porta, e supus que o fogo já havia se alastrado. Desci as escadas com passos lentos, o suor banhava meu corpo que aderia à roupa. Acendi um cigarro, finalmente, mas joguei-o pelo bueiro imaginando os pulmões pretos do cara. O cardápio da noite seria pulmões assados.
3 comentários:
Trecho bom... Diferente dos outros (melancólicos).
Depois diz que não tinha idéias, hein...
Acho que o Charlie te ajudou muito!
Li o resto.
As vezes nao sei se queres alguem pra te fazer voar ou alguém pra concordar com você
Concordarei.
Esse seu texto tá horrivel.
Te amo,
B.
É justamente o que sinto agora,mas tudo passará.
Como vc mesmo disse "pensamentos são eméferos" e resistirei até o fim.
Bises
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